Como o
Parlamento de Ruanda se tornou o mais feminino do mundo
Publicado há 4 dias - em 11 de novembro de 2015 »
Atualizado às 9:14
Categoria » África e sua diáspora · Questões de Gênero
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RWANDA GENOCIDE POLITICS - In this photo of Monday, May, 17 , 2010, Rwandan
President Paul Kagame, centre, takes part in a group photo at a conference on
the role of women at the nation's parliament, Rwandan officials say the
country's parliament has a higher percentage of women than any other parliament
in the world. More than 50 percent of the parliament's lower house are women. (AP Photo/ Jason Straziuso).
Qual o país com maior número de mulheres no
Parlamento?
Nada de Noruega, Finlândia ou Dinamarca. Esse (lindo)
recorde pertence a Ruanda, um país africano de pouco mais de 11 milhões de
habitantes e que traz na história recente terríveis marcas de um genocídio,
ocorrido há pouco mais de 20 anos.
por Gabriela Bazzo no Brasil Post
“É num contexto extremamente adverso que as mulheres lutam para se
manter vivas e, na maioria das vezes, têm de se reconstituir a partir de
violações de direitos, inclusive num novo país onde começam suas vidas com
escassez de recursos sociais e econômicos”, conta Nadine Gasman, representante da
ONU Mulheres, em entrevista ao HuffPost Brasil.
De acordo com o The Guardian, durante o genocídio, em 1994, entre 250 mil
e 500 mil mulheres foram estupradas.
Após esse trauma, as ruandesas vêm unindo forças em prol de seus
direitos e de sua liberdade. E o resultado enche o mundo de esperança:
§ A taxa de natalidade do país está em queda;
§ Os direitos das
mulheres foram incluídos na Constituição de Ruanda;
§ E a cereja do bolo: o
país ostenta o título de possuir o Parlamento mais feminino do
planeta: 63,8% da câmara baixa de Ruanda é composta por mulheres. Já no
Senado, elas ocupam quase 40% das vagas.
Segundo Nadine, “a participação das mulheres na política de Ruanda é um
caso concreto de que é possível elas ocuparem os postos de decisão e fazerem a
diferença positiva na política nacional”.
No segundo lugar da lista, está a Bolívia, com 53% dos assentos. Logo
atrás, vêm Andorra, com 50%, e Cuba, com 49%.
Os primeiros países da lista implementaram cotas para mulheres no
Parlamento: em Ruanda, por exemplo, a Constituição de 2003 instituiu vagas para
mulheres, além de 30% de cotas no serviço público e igualdade de gênero na
educação e na compra de terras.
Desconsiderando ações afirmativas, o primeiro lugar
ficaria com a Suécia, que tem 44% dos assentos ocupados por mulheres.
No mundo todo, de acordo com a ONU Mulheres, há 37 países onde as mulheres ocupam menos
de 10% dos assentos parlamentares.
A situação é pior em Palau, na Micronésia, Tonga, Vanuatu, no Qatar e no
Iêmen, com ZERO mulheres atuando como parlamentares.
Segundo dados de setembro deste ano, o Brasil ocupa o número
118 na lista, com 9,9% de participação feminina na Câmara e 16% no Senado.
De acordo com a ONU Mulheres, uma maior representação feminina no Estado
faz, sim, muita diferença.
Pesquisas em conselhos locais indianos comprovam que
o número de projetos envolvendo água potável em áreas com conselhos liderados
por mulheres era 62% maior do que em locais onde os homens estavam no comando.
Já na Noruega, pesquisas encontraram uma relação direta entre a presença de
mulheres nos conselhos municipais e a criação de creches.
O Banco Mundial afirma que, em termos globais, as mulheres ocupam cerca de 20% dos
assentos parlamentares.
E como Ruanda se tornou a número 1?
Uma série de mecanismos legais, como o estabelecimento de
cotas para mulheres no Parlamento (e em todos os órgãos tomadores
de decisão) e a criação de conselhos locais exclusivamente femininos,
foi fundamental para que, no ano passado, as mulheres atingissem uma fatia
superior a 60% do Parlamento do país.
Além disso, o genocídio também mudou o papel das mulheres na sociedade
de Ruanda: dois anos depois das mortes, cerca de 70% da população adulta do país era composta por
mulheres.
Nesse contexto, elas assumiram papéis de liderança, tanto em termos
econômicos quanto sociais.
A diretora-executiva da Aliança Internacional Heartland, Elizabeth
Powley, trabalha com a proteção e promoção de direitos de populações
extremamente vulneráveis no mundo.
Ela relatou em um estudo de caso a
crescente participação feminina na política ruandesa:
“O genocídio [em
Ruanda] forçou as mulheres a pensarem nelas mesmas de forma diferente e, em
muitos casos, a desenvolver habilidades que elas não teriam adquirido em outra
situação.”
Até o genocídio, que vitimou 800 mil pessoas (um décimo da população),
em 1994, as mulheres nunca haviam ocupado mais de 18% dos assentos no
Parlamento.
Após as mortes, milhares delas ficaram viúvas e tiveram que criar seus
filhos sozinhas, sem nenhuma presença masculina.
Muitos desses homens, criados pelas mães viúvas, violentadas ou
soropositivas (infectadas em estupros), ocupam hoje importantes cargos
políticos e lutam por uma sociedade mais inclusiva.
Nadine Gasman, da ONU Mulheres, explica o processo de mudança em Ruanda:
“A área de educação
incorporou a igualdade de gênero nas suas matrizes de formação. Houve aumento
no acesso da população à saúde e queda significativa da mortalidade infantil.
As mulheres estão mais presentes no serviço público e também passaram a ser titulares
de terras. Em amplos setores, as mulheres alargaram a sua participação,
conquistando voz e poder de decisão que colaboraram para o país se reconstituir
num dos casos mais trágicos de guerra no mundo.”
O papel dos conselhos femininos
Segundo Swanee Hunt, fundadora e diretora do Instituto for Inclusive
Security, a criação de conselhos locais femininos foi imprescindível para
aumentar a participação política feminina e para dar voz às mulheres em uma
sociedade bastante patriarcal. “Havia milhares deles, mesmo nesse pequeno país”,
contou ela ao Daily Beast.
Os conselhos femininos foram criados após o genocídio. Até então, as
mulheres praticamente não tinham participação na vida política em âmbito local.
Essas instituições funcionam de forma paralela aos conselhos locais e se
encarregam de assuntos como educação, saúde e segurança pessoal, segundo
a Foreign Affairs.
“As mulheres foram muito estratégicas. Afinal, esses conselhos, que
empoderaram as mulheres para falar e lutar pelos seus direitos, para liderar,
foram criados em 1996. Mas as mulheres não estão confinadas aos conselhos
femininos; elas também podem lutar pelo seu lugar nos conselhos locais, onde
homens participam”, conta a embaixadora Fatuma Ndangiza, que aponta o
empoderamento das mulheres como o empoderamento da sociedade.
A diretora do conselho feminino tem um assento reservado no conselho
local, servindo como um “elo” entre os dois sistemas.
A questão de gênero também virou bandeira
partidária e questão nacional.
O RPF, partido da situação no país, compromete-se a aumentar a
participação política feminina em Ruanda.
“O gênero agora é parte do nosso pensamento político. Nós admiramos todos
aqueles que compõem nossa população, pois nosso país já viu o que significa
excluir um grupo”, afirma John Mutamba, do Ministério de Desenvolvimento
de Gênero e Mulheres de Ruanda.
Os avanços da sociedade ruandesa
Entre 1994 e 2003, período em que o país foi comandado por um governo de
transição, a representação feminina no Parlamento — por indicação — chegou a
27,5%. Mas foi em 2003, nas primeiras eleições parlamentares, que as mulheres
conquistaram quase 50% dos assentos.
“A questão não é o sexo. A questão é a igualdade de oportunidades, de
direitos humanos e dos cidadãos, algo fundamental para qualquer cidadão”,
afirmou a parlamentar ruandesa Connie Bwiza Sekemana ao Banco Mundial.
Em 2008, o país se tornou o primeiro do mundo a ter maioria feminina em
um parlamento. Foi naquele mesmo ano, segundo a National Geographic, que foram adotadas leis que tornavam
a violência doméstica ilegal e que previam punições severas para casos de estupro.
Em um artigo publicado na Foreign Affairs, Swanee Hunt cita mais alguns avanços do
país: com uma economia aquecida, Ruanda se junta ao Mali no primeiro lugar
entre as nações africanas no que se trata de progressos para alcançar as metas
dos Objetivos do Milênio da ONU.
Além disso, a expectativa de vida no país aumentou dez anos na última década e um programa de
educação compulsória fez que meninos e meninas tivessem a mesma presença nas
escolas primárias e secundárias do país.
“O empoderamento efetivo das mulheres e a capacidade delas de gerar
benefícios para a comunidade foram medidas decisivas para promover a
reconstrução do país, o que propiciou mudanças de rumo na gestão política,
econômica e social por meio da valorização da colaboração das mulheres para a nação”,
ressalta Nadine Gasman, da ONU Mulheres.
Para a especialista, Ruanda é um exemplo mundial de que as mulheres são
determinantes nos processos de construção da paz.
As dificuldades de hoje
Se a constituição de Ruanda é, por um lado, progressista em termos de
direitos das mulheres, há muito o que avançar em áreas como a liberdade de
discurso e o respeito às minorias étnicas, segundo Elizabeth
Powley.
A pesquisadora também relata preconceito e inexperiência de algumas
parlamentares, que acabam precisando “provar” sua competência como líderes.
“Há também uma óbvia diferença de status entre as mulheres que
conquistaram seus assentos em competição aberta com os homens e entre aquelas
que estão no Parlamento por causa das cotas”, conta.
Mesmo diante de uma melhora, as mulheres do país ainda saem perdendo dos
homens em termos de educação, direitos legais, acesso à saúde a outros
recursos.
Outro aspecto que preocupa no país são os índices de violência
doméstica, que ainda é algo “aceito” pela sociedade. Uma frase comum no país
é “niko zubakwa” ou “é assim que os casamentos são construídos”.
Os índices de violência contra a mulher em Ruanda ainda são bastante
altos: em uma pesquisa de 2010, 40% das mulheres afirmaram que
haviam sofrido violência física pelo menos uma vez desde os 15 anos. Além
disso, um relatório de 2011 mostrou que 57% das entrevistadas
já foram agredidas pelo parceiro e 32% estupradas pelos maridos.
Os conselhos femininos sofrem com a ausência de recursos, segundo
Elizabeth Powley. Por isso, eles são menos eficazes do que poderiam ser, tendo
em visto que suas integrantes são voluntárias e têm que conciliar os afazeres
políticos com outros papéis sociais.
Será preciso ainda mais esforço para levar a Ruanda do Parlamento para
as ruas e para todas as mulheres do país.
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