O
desabafo da jovem negra que se fantasiou de “paneleira” no Carnaval
Categoria
» Questão Racial
“A graça que vemos na Lolo não está apenas na cor,
mas porque, na realidade, longe dos dias de confete e serpentina onde os papéis
se invertem, Lolos nos oprimem com seu dinheiro, suas opiniões e sua indignação
seletiva. Mas, neste Carnaval, pudemos rir dela e algo mudou”, diz a blogueira sobre
a personagem que criou
Existe whiteface?
Por Luanna
Teofillo*, da Revista Fórum
Quem é
Lolo?
“Teatro é
uma arma. Uma arma muito eficiente.” Augusto Boal
Heloísa Clarice Figueiroa dos
Santos, paulistana da gema e, apesar dos pais não serem casados no papel (o avô
de Lolo era militar e a mãe recebe a pensão destinada a filhas solteiras de
militares), representa a família tradicional brasileira e é um personagem
cômico. Entre leituras de Brecht e Augusto Boal e seu Teatro do Oprimido,
surgiu a ideia de Lolo – a Paneleira, sátira criada para o Carnaval de 2016.
Os detalhes da sua caracterização
contam mais a sua história: a bolsa Channel para lembrar os dias em Paris (lugar muito superior a São Paulo), a
camiseta vintage da seleção herdada do avô militar e a panela na mão
como símbolo de sua indignação. Lolo está indignada com tudo o que esta aí, mas
não sabe exatamente o que é esse tudo. Ela bate panela na janela para mudar
nosso país.
Lolo não é racista, mas acha que
lugar de moreninho não é na universidade ao seu lado, pois cada um deve ficar
no seu devido lugar. As flores no cabelo mostram um certo clima hippie chic,
afinal ela quer paz e amor com o apoio do aparelho policial do Estado para
defender seu patrimônio e os seus.
Trata-se de um personagem
complexo, dadas as incongruências nas esferas subjetiva, social e política da
sua psique e por ser tão psicologicamente completo quanto as pessoas reais, mas
ela não é real. A composição é baseada em um tipo que vemos todos os dias na
internet, no trabalho, na TV. Sabemos o que ela pensa e o que vai dizer, como
se veste e as baladas que frequenta. A Lolo é um personagem do cotidiano,
especialmente em São Paulo. Todos conhecemos uma Lolo.
A questão é que, uma vez lançado
na internet, em manobra de percepção e identificação simbólica do público, o
pensamento coletivo dos espectadores mudou os rumos do personagem. A complexa
Lolo foi, digamos, reduzida à Branca Maluca. E isso é bom.
No começo foi interessante, as
pessoas entendiam o personagem e continuavam sua história. Um personagem
esférico tende a evoluir ao longo de sua existência e foi o que aconteceu. Os
primeiros compartilhamentos falavam de como Lolo estava cansada de morar no
Brasil e já estava de mala e cuia para Miami, como Lolo não era racista por ter
um amigo preto e que seu objetivo era tirar uma selfie com a polícia
para demonstrar seu apoio a quem garante a ordem.
O conteúdo e a riqueza da
interação criativa das pessoas fizeram Lolo rapidamente se transformar de forma
satírica em uma mensagem política e social. A problemática surgiu quando Lolo
foi erroneamente comparada com a já conhecida Nega Maluca e se tornado seu oposto, a Branca
Maluca. Por que Lolo é mais do que uma “branca maluca”?
A fatídica fantasia de Nega
Maluca, que alguns de vocês que leem esse texto já utilizaram, até mesmo neste
Carnaval, é apenas racista e preconceituosa. Nada mais e por isso não deve ser
usada. A Nega Maluca é considerada cômica somente porque é negra, por seu
cabelo crespo e porque é uma empregada doméstica como são nossas mães, nossas
irmãs e nós mesmas. Uma mulher preta é engraçada apenas por ser preta e isso é racismo.
Já Lolo é muito mais do que uma
cara branca, ela é um pensamento que nos assombra, uma palavra que nos ofende,
um movimento que nos oprime por sermos pretos, pobres, moreninhos, empregadas,
gordos, necessitados, nordestinos. A graça que vemos na Lolo não está apenas na
cor, mas porque, na realidade, longe dos dias de confete e serpentina onde os
papéis se invertem, Lolos nos oprimem com seu dinheiro, suas opiniões e sua
indignação seletiva. Mas, neste Carnaval, pudemos rir dela e algo mudou.
Não
existe whiteface
Não existe whiteface. Não
existe movimento artístico grotesco, em paralelo ao blackface, que
sirva apenas para fazer rir a partir da
humilhação e degeneração de pessoas brancas. Não existe escola teatral ou artifício cômico que se utilize desse artificio grosseiro para discriminar o branco e sua cultura. Brancos não sofrem racismo. Brancos não sofrem preconceito por serem brancos.
Naturalmente a comparação cresceu
conforme as imagens foram compartilhadas. Muitos riram e gozaram do fato de
que, pelo menos desta vez, a risada era deles, dos que sempre são o motivo da
piada. “Chegou o dia, chegou a nossa vez!”, disseram. Com prazer vi pessoas se
deleitarem com a oportunidade única de rir dos símbolos do opressor de forma
pungente, a vingança de anos de perucas black power e pessoas pintadas
com piche. É óbvio que Lolo Figueiroa se vestiu de Nega Maluca em algum
carnaval. Alguém tem alguma dúvida?
Whiteface seria
pouco
Seria muito fácil simplesmente me
utilizar dos artifícios grotescos e fazer algo que poderíamos chamar de whiteface,
a caracterização grotesca do branco, seus trejeitos e cultura. Mas seria pouco,
seria baixo. Seria limitar um personagem em sua profundidade e atribuir apenas
o caráter cor, e isso não tem graça. O problema da Lolo vai muito além de ser
branca, é seu caráter, sua ideologia e sua posição social. Lolo tem uma
empregada preta que bate a panela quando ela se sente indignada e para ela essa
é a ordem das coisas.
Esse tipo de personagem, o
burguês canastrão e preconceituoso, é popular na cultura brasileira. Em todas
as novelas e programas de humor tem um rico mau, ganancioso, sem escrúpulos,
preconceituoso, que usa de sua posição social para explorar aqueles que não
pertencem a seu grupo. Tem também a patricinha sem noção que vai levando a vida
em ritmo de sinhazinha com sua empregada de confiança, seu motorista e sua
ojeriza ao pobre. E são todos brancos, ou ninguém percebe? O rico estereotipado
na TV, as Lolos das novelas são sempre brancas, mas parece que as pessoas não
se veem ou não se importam que outros brancos representem seus defeitos e estereótipos,
mas se uma mulher preta se torna protagonista desse debate e interpreta o
personagem, bem, aí é racismo.
Para quem tem uma boa posição
social, falar de comida é coisa baixa. É compreensível: eles já comeram.
Bertold Brecht
Mas, estamos falando da internet,
lar do ódio, do escárnio, da discussão infinita, dos crimes da palavra.
“Racismo inverso”, gritaram, “Então quer dizer que Nega Maluca não pode e
Branca Maluca pode?”, “Petralha” etc… Alguns se ofenderam e gritaram as
palavras que já conhecemos e querem ter assegurado seu direito de gozar de seus
privilégios sem serem ridicularizados com o riso do outro. Com eles, não! Já
temos as negas malucas pra isso, oras.
Enquanto isso, hoje é segunda e
Lolo já cumpriu seu papel. Muitos riram, se divertiram, se sentiram vingados,
mas muitos também pensaram que o mundo poderia ser diferente. Guardo minha
fantasia e fico pensando. E se no próximo ano sairmos juntos num bloco de
paneleiros, gritando palavras de ordem como “viva a democracia, intervenção
militar já”, rindo de nossas histórias sobre baladas top, sonhos de fugir do
Brasil, com nossas empregadas que são quase da família, o que poderia
acontecer? O que vai acontecer com Lolo Figueiroa, só o Carnaval e o tempo
dirão…
* Luanna Teofillo é mestre pela Universidade
Sorbonne Nouvelle em Paris, cujo tema de Mémoire foi “O Homem e os Negros – Da
alteridade e racismo na linguagem”. Há mais de 8 anos publica o blog Efigenias
sobre linguística, humor, mundo pop e o racismo cotidiano.
Fotos:
Reprodução/Facebook
Tags: blackface
· Luanna Teofillo · Mulher
Negra · Questão Racial
Leia a matéria completa em: O desabafo da jovem negra que se fantasiou de “paneleira” no Carnaval - Geledés http://www.geledes.org.br/o-desabafo-da-jovem-negra-que-se-fantasiou-de-paneleira-no-carnaval/#ixzz418M9ICoY
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